Canoas concentra maior número de desabrigados
Um ano depois da maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul, 383 pessoas ainda vivem em abrigos espalhados pelo estado. A maioria está concentrada em Canoas e Porto Alegre, nas duas maiores estruturas ainda ativas, que juntas acolhem 336 pessoas – cerca de 93% do total. O número, embora distante dos mais de 80 mil abrigados no auge da crise, revela a dificuldade enfrentada por famílias em situação de extrema vulnerabilidade social para recomeçar.
No Centro Humanitário de Acolhimento (CHA) Esperança, instalado no Centro Olímpico de Canoas, vivem atualmente 216 pessoas. Uma delas é Almerinda Veiga da Silva, 57 anos, que está em seu quinto abrigo desde que viu o bairro Rio Branco ser tomado pelas águas. Ela perdeu a filha com Síndrome de Down, vítima de um agravamento de traumas gerados pela enchente, e o marido, que entrou em depressão e faleceu no Natal.
“Não tá sendo fácil”, desabafou à Agência Brasil. Embora tenha conseguido acesso ao programa de aluguel social, que prevê o pagamento de R$ 1 mil mensais por até 12 meses, ela ainda não deixou o abrigo por não ter os móveis necessários para ocupar o imóvel. “A casa tá alugada, foi pago o contrato, mas eu não tenho como morar nela sem nada. Só vou sair do abrigo quando tiver meus móveis”, disse.
O abrigo de Canoas, que opera desde julho de 2024 por meio de uma parceria entre o governo estadual, a Fecomércio-RS e a Agência da ONU para as Migrações (OIM), deve ser desativado até o fim de maio. A unidade oferece alimentação, atendimento médico, assistência social, apoio para inserção no mercado de trabalho, acesso a programas de moradia e até um espaço destinado aos animais de estimação dos abrigados.
Outro abrigo, também fruto da parceria com a OIM, segue em funcionamento em Porto Alegre, com cerca de 120 pessoas. Ele também está em processo de desmobilização.
Caminhos lentos para a reconstrução
Desempregado, Claudio Joel Bello, 43 anos, também vive no CHA Esperança. Ele teve a casa destruída no bairro Mathias Velho e foi selecionado para receber uma moradia por meio do programa federal Compra Assistida, que concede R$ 200 mil para a compra de um imóvel usado. Ainda assim, permanece no abrigo, à espera da conclusão do processo. “Se o governo me deu a casa, por que não posso me mudar logo?”, questiona.
Canoas é o município com maior número de pessoas ainda em abrigos no estado. Segundo a prefeitura, estão em fase final de construção 58 casas temporárias no bairro Estância Velha. Os módulos habitacionais, orçados em R$ 133 mil cada, contam com mobília e eletrodomésticos e devem começar a ser entregues até o dia 15 de maio. Já o aluguel social contempla atualmente 1.249 famílias no município, sendo 77 contratos vinculados ao CHA.
O município também conta com dois empreendimentos habitacionais em construção, nos bairros Niterói e Fátima, que somam 400 unidades financiadas pela Caixa. Outros dois contratos já assinados preveem a construção de mais de 1,5 mil moradias para famílias afetadas pelas enchentes, com previsão de entrega em até 18 meses. A administração ainda busca autorização para outras 3 mil unidades.
Além disso, um convênio com o governo federal, via Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, prevê a reconstrução de até 210 casas em Canoas, com custo unitário de R$ 150 mil. Desde a enchente, mais de 18,6 mil imóveis passaram por vistorias: 5.502 foram considerados inabitáveis e devem ser interditados, enquanto 1.269 ainda aguardam avaliação.
A difícil rotina da espera
A maioria dos abrigados são pessoas em situação de vulnerabilidade acentuada, como mães atípicas, desempregados ou idosos. Para alguns, como Josebete da Silva, de 47 anos, há expectativa de uma mudança breve. Ele deixará o abrigo para morar com a família em um contêiner de concreto de 27 metros quadrados no bairro Estância Velha. “Para mim, que pago aluguel, vai ser melhor. A esposa que escolheu”, contou, esperançoso de um dia alcançar uma moradia definitiva.
Enquanto isso, muitos ainda enfrentam o cotidiano incerto dos abrigos. A história de dor e resistência de quem sobreviveu à tragédia revela que o desafio da reconstrução vai muito além das estruturas físicas. A ferida social aberta pelas águas segue à espera de cura.